QUEM ERA JÓ – Parte II

QUEM ERA JÓ – Parte II

O temor do Senhor é a base de uma vida reta e íntegra.

Na primeira parte, que foi mais informativa e introdutória, vimos um pouco das características do livro de Jó. Mas, quem foi Jó? Como as Escrituras se referem a esse homem? É possível ser próspero e, ao mesmo tempo, ter um caráter íntegro e piedoso? Esta última pergunta faz sentido porque não é pouco comum correlacionar o defeito de caráter de uma pessoa com o advento de seu sucesso. O leitor da Bíblia sabe do cuidado que as Escrituras apontam para a relação humana com o dinheiro. Sim, a Palavra de Deus diz que “porque o amor ao dinheiro é a raiz de todos os males” (1 Tm 6:10). Isso ocorre por causa do apego, da ambição que o Homem desperta diante do dinheiro ou de algum bem material. Essa disposição pode aniquilar a nossa integridade e piedade. Mas ao longo desta segunda parte, veremos um modelo de integridade, prosperidade e piedade juntamente com o temor do Senhor. Que o exemplo de Jó fale aos nossos corações.

Havia um homem na terra de Uz, cujo nome era Jó; e era este homem íntegro, reto e temente a Deus e desviava-se do mal. E nasceram-lhe sete filhos e três filhas. E o seu gado era de sete mil ovelhas, três mil camelos, quinhentas juntas de bois e quinhentas jumentas; eram também muitíssimos os servos a seu serviço, de maneira que este homem era maior do que todos os do oriente. E iam seus filhos à casa uns dos outros e faziam banquetes cada um por sua vez; e mandavam convidar as suas três irmãs a comerem e beberem com eles. Sucedia, pois, que, decorrido o turno de dias de seus banquetes, enviava Jó, e os santificava, e se levantava de madrugada, e oferecia holocaustos segundo o número de todos eles; porque dizia Jó: Porventura pecaram meus filhos, e amaldiçoaram a Deus no seu coração. Assim fazia Jó continuamente.” (Jó 1:1-5)

O livro de Jó inicia-se destacando o seu caráter. O autor sagrado não elabora uma biografia de Jó, mas traça um perfil que fala muito sobre esse gigante da fé. Jó foi um homem diferenciado, não em natureza, pois ele tinha a natureza pecaminosa igual a nós. Todavia, foi, sem dúvida, distinto na espiritualidade dos demais de sua época. Foi um homem que não apenas tinha bens materiais e uma família sólida, mas mantinha uma profunda intimidade com Deus.  

Íntegro (sincero) (v.1). O caráter define o que uma pessoa é de verdade. O “mau-caráter” define uma pessoa que não merece confiança e que é desonesta, não possuindo valores louváveis. Jó não era um homem sem pecado, mas tinha um caráter irretocável. Nesse sentido, os primeiros versículos do livro possuem vários adjetivos que descrevem seu caráter. No primeiro, o autor o apresenta como um homem íntegro. A palavra “íntegro”, que traduz o hebraico tām, possui o sentido de inocente, sem culpa. No grego, segundo a Septuaginta, a palavra alethinós remete ao que ao que é verdadeiro. Assim, podemos afirmar que Jó era sincero nas intenções, afeições e diligente nos esforços para cumprir seus deveres para com Deus e os Homens.  

Reto (v.1). Ele também era um homem reto que, no hebraico yāsār, tem um sentido de alguém justo, direito. Na Septuaginta, de acordo com o grego amemptos, possui o sentido de irrepreensível. Portanto, o homem de Uz era justo, reto, direito e se comportava de maneira irrepreensível.

Temente a Deus e desviava-se do mal (v.1). Jó é descrito como alguém temente a Deus, que se desviava do mal. Estas palavras, de acordo com os termos relativos ao hebraico, sur e yare, traduzem a ideia de alguém que prestava reverencia a Deus e evitava o mal. Já na Septuaginta, os termos relativos ao grego, theosebés e apecho, trazem o sentido de alguém devotado ao culto e à adoração a Deus e que, por isso, mantinha o mal sempre à distância.  

As Escrituras mostram que, muito antes de Salomão, Jó praticava o que o homem mais sábio do mundo, posteriormente, ensinaria: “Teme ao SENHOR e aparta-te do mal” (Pv 3:7). “O temor do Senhor” é central à literatura sapiencial, ocorrendo quatorze vezes em Provérbios e várias vezes em Jó.

Um conselheiro sábio. Há pessoas ricas que nem são sábias nem tampouco prósperas. Possuem conhecimento, mas não entendimento; riquezas, mas não prosperidade. Jó distingue-se nesse aspecto. Ele foi um homem sábio, rico e próspero. A Bíblia afirma que Jó era “maior do que todos os do Oriente” (Jó 1:3). “Maior” aqui não pode ser entendido apenas como uma referência a bens materiais, mas também à sua sabedoria. Estudiosos destacam que Jó era mais importante em sabedoria, riqueza e piedade do que qualquer homem ou mulher daquela região e ressaltam o reconhecimento da sabedoria de Jó conforme se destacava a sabedoria do povo do Oriente expressa em provérbios, canções e histórias. Isso fazia dele um homem proeminente, a quem as pessoas recorriam com frequência em busca de conselhos e orientações.

Um homem próspero. O homem de Uz não era apenas rico, mas, sobretudo, próspero. O texto sagrado nos diz que, além de sua esposa, ele tinha sete filhos e três filhas (v.2). Para os padrões da época, ele tinha a família ideal e modelo. Ele também era um fazendeiro bem sucedido. Em sua fazenda havia mais de dez mil animais e muitas pessoas a seu serviço (v.3).

Uma prosperidade baseada no “ser”. A prosperidade de Jó se refletia na relação harmoniosa entre ele, sua família, seus negócios e, sobretudo, Deus. Era uma prosperidade além do “ter”, pousando, sobremaneira, no “ser”. Esses dois verbos andavam de mãos dadas na vida desse homem. As pessoas reconheciam o conjunto da obra.

Acreditava-se naquela época que a família e os rebanhos eram bênçãos de Deus para uma pessoa reta. Toda a riqueza de Jó significava que ele desfrutava do favor abundante de Deus.

Destarte, Jó ainda era um homem dedicado à família, um homem de moral e piedade e um homem de vida consagrada. Jó permitia e apoiava financeiramente as festividades que seus filhos faziam entre si. O texto também deixa claro que ele tinha uma vida piedosa (Jó 1:5). Essa piedade está presente em todo o livro, não somente no primeiro capítulo. E, como sacerdote do lar, Jó cumpria o ritual do culto em favor da família. Levantar de madrugada para fazer tal tarefa, no hebraico, é uma forma de enfatizar a piedade e vida consagrada de Jó. O texto em português diz que ele se “santificava”. Esse vocábulo “santificava” traduz o termo hebraico, qadash, que possui o sentido de ser separado ou consagrado. Com isso, à luz da vida de Jó, somos instados a viver uma vida consagrada diante de Deus e dos homens.

Jó não precisou isolar-se para tornar-se piedoso. Foi como pai de família, homem de negócios e sendo membro de uma sociedade politicamente organizada, que ele pontificou-se como o melhor Homem de seu tempo. Ninguém nunca precisou isolar-se para ser reconhecido como santo; um santo nasce exatamente em meio às tentações da vida. Todos os heróis da fé estiveram no meio da sociedade, fazendo seus papéis. Afinal, Cristo não se afastou dos Homens para redimi-los, pelo contrário, fez-se carne e andou junto de pessoas discriminadas e visivelmente pecadoras. Enganam-se os que julgam ser a santidade o resultado de uma vida solitária e no anonimato. Santidade é serviço; é dedicação integral ao Senhor Jesus; é desviar-se do mal e ter a parecença do Cordeiro de Deus. Assim como Jó fez, façamos nós também.

É possível que alguém seja rico, mas não possua caráter algum; da mesma forma é possível que alguém possua valores morais sem, contudo, esboçar piedade alguma. Todavia, ninguém terá um caráter irretocável, não apenas fragmentos ético-morais; prosperidade, não apenas posses; piedade, não apenas religiosidade se não conhecer a Deus na intimidade. Jó era assim: íntegro, reto, temente a Deus e se desviava do mal.  

Soli Deo Gloria! Glória Somente a Deus!

VOCABULÁRIO:

-Septuaginta: A primeira e mais antiga tradução grega do texto hebraico do Antigo Testamento.

-Afeições: Afeto, afeiçoamento.

BIBLIOGRAFIA:

ANDERSEN, Francis I. Jó: introdução e comentário. São Paulo: Vida Nova, 2008.

ANDRADE, Claudionor. Jó: o problema do sofrimento do justo e o seu propósito. Rio de Janeiro: CPAD, 2006.

KEENER, Craig S. A Hermenêutica do Espírito: lendo as Escrituras à luz do Pentecostes. São Paulo: Vida Nova, 2018.

WALTKE, Bruce K. Teologia do Antigo Testamento: uma abordagem exegética, canônica e temática. São Paulo: Vida Nova, 2015.

MACARTHUR, John. Comentário Bíblico: Jó. Rio de Janeiro: Thomas Nelson, 2019.

VANHOOZER, Kevin J. O Drama da Doutrina: uma abordagem canônico-linguística da teologia cristã. São Paulo: Vida Nova, 2016.

BÍBLIA – Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 2002.

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