JÓ E A REALIDADE DE SATANÁS – Parte III

JÓ E A REALIDADE DE SATANÁS – Parte III

O Diabo é um ser espiritual criado e dotado de personalidade.

Na segunda parte, vimos sobre o caráter de Jó. Agora, conheceremos um pouco a respeito de Satanás, sua existência e suas habilidades, segundo o livro de Jó. Uma das coisas mais perigosas é uma ideia que revela determinado extremo. Acerca de Satanás há pelo menos duas. A primeira tende a negar sua existência. A segunda, supervaloriza a ação maligna como se Satanás fosse uma entidade onipotente. O livro de Jó revela a realidade do Diabo. É o livro mais claro no Antigo Testamento sobre esse assunto. Entretanto, de maneira equilibrada, podemos aprender que o Diabo tem determinada ação no mundo, mas ele jamais foi maior que Deus, nem muito menos exerce ação autônoma. O livro de Jó mostra com clareza que o Diabo está submetido a Deus, desde sempre. Essa compreensão é alentadora, pois não podemos ignorar a sua ação, mas também não devemos supervalorizá-la porque maior é o Deus que nos salvou.

“Num dia em que os filhos de Deus vieram apresentar-se diante do Senhor, veio também Satanás entre eles. Então o Senhor perguntou a Satanás: — De onde você vem? Satanás respondeu ao Senhor: — De rodear a terra e passear por ela. E o Senhor disse a Satanás: — Você reparou no meu servo Jó? Não há ninguém como ele na terra. Ele é um homem íntegro e reto, que teme a Deus e se desvia do mal. Então Satanás respondeu ao Senhor: — Será que é sem motivo que Jó teme a Deus? Não é verdade que tu mesmo puseste uma cerca ao redor dele, da sua casa e de tudo o que ele tem? Abençoaste a obra de suas mãos, e os seus bens se multiplicaram na terra. Mas estende a tua mão e toca em tudo o que ele tem, para ver se ele não blasfema contra ti na tua face. Então o Senhor disse a Satanás: — Você pode fazer o que quiser com tudo o que ele tem; só não estenda a mão contra ele. Então Satanás saiu da presença do Senhor.” (Jó 1:6-12, NAA)

Cada civilização e cada cultura possuem seus próprios mitos. Os melhores dicionários definem mito como sendo uma forma de pensamento oposta ao pensamento lógico-científico. Seria a tentativa de explicar o misterioso e o sobrenatural de modo não racional ou não naturalista. Assim, é possível falar de mitologia grega, persa, romana, nórdica, babilônica, etc. Nesse contexto, historiadores e antropólogos, associam o surgimento da crença em demônios, espíritos maus e até mesmo no Diabo aos primórdios da civilização humana. Acredita-se, por exemplo, que a magia e a feitiçaria já eram amplamente praticadas na Mesopotâmia por volta de 3500 a.C. Por essa perspectiva, demônios, espíritos maus e o Diabo não seriam seres pessoais, nem mesmo reais, mas apenas representações míticas que o homem primitivo teria dado às forças cósmicas para as quais não teria explicação racional. O Diabo da mitologia não é real e, portanto, não assume o caráter de pessoalidade.

Por outro lado, o racionalismo filosófico não admite o mal como sendo uma realidade espiritual, já que não passa pelo crivo da razão. O mal é apenas o oposto moral da verdade ou do bem. Por exemplo, a fidelidade seria vista como um bem, enquanto a infidelidade, o seu oposto, seria um mal.

A concepção que se tem do Diabo e da existência do mal segundo a cultura bíblica difere muito do mítico e do racionalismo. De acordo com a Bíblia, o Diabo existe e é real. Mas, todavia, no estudo sobre a existência de Satanás na cultura judaico-cristã, é preciso levar em conta o caráter progressivo da revelação bíblica. Fica bem explícita a diferença de compreensão entre o Antigo Testamento e o Novo Testamento a respeito do Diabo e dos demônios. No Novo, a compreensão é mais completa. Isso explica, por exemplo, por que muitas vezes o mal não é descrito de maneira personificada e também o porquê de o caráter de Satanás não ser explicitado no Antigo Testamento. Mesmo não tendo a Revelação completa, o Antigo Testamento não nega a existência de Satanás e a personificação do mal (1 Cr 21:1). O Diabo descrito no livro de Jó é, portanto, um ser maligno, real e pessoal.

Satanás é a tradução do termo hebraico sãtãn, com o sentido de adversário e oponente. O livro de Jó mostra como o Diabo pode interferir na vida humana. Mas já dizia Matinho Lutero, “O Diabo é um cão na coleira de Deus”, ou seja, ele só irá onde Deus permitir.  

Um ser espiritual. O livro de Jó não procura provar a origem do Diabo, mas o releva como um ser real. Destaca algumas características da natureza de Satanás que nos permitem conhecê-lo melhor. Em primeiro lugar, conforme o livro apresenta, o Diabo é um ser espiritual e encontra-se na mesma categoria dos anjos, representada no texto pela expressão “os filhos de Deus” (Jó 1:6). Os anjos são seres espirituais que não pertencem à dimensão natural, mas à sobrenatural. Isso explica, por exemplo, a capacidade da rápida locomoção do Diabo quando rodeava a Terra e passeava por ela (Jó 1:7).

Um ser criado. Satanás é um ser criado. Mesmo sendo um anjo, dotado de natureza espiritual, ele não é autoexistente. Ao contrário de Deus, que criou todas as coisas, o anjo que se tornou Satanás teve uma origem. Nem sempre o Diabo foi Diabo. Ele fora um anjo bom como os demais. Assim, ele é uma criatura, não o Criador. Por isso, o livro revela que Satanás tem suas ações limitadas por Deus. Ele pode fazer muitas coisas, mas não tudo (Jó 1:12; 2:7). Como ele não é autoexistente e, semelhante às outras criaturas que povoam o universo, não é um ser incriado, o Diabo é uma criatura limitada.

Um ser dotado de personalidade. Além do fato de ser um ente espiritual, o diabo é dotado também de personalidade. Ele é uma pessoa e se apresenta como tal. No livro de Jó o vemos assumindo atributos de um ser pessoal. Ele fala e possui capacidade argumentativa (Jó 1:9-11). Essa mesma característica aparece de forma mais explícita na tentação de Cristo (Mt 4:1-11; Lc 4:1-13). No livro, além de se apresentar verbalmente, Satanás também demonstra possuir conhecimento. Ele sabe o que se passa na Terra e como se comportam os homens. Ele conhecia a vida de Jó. Isso faz dele um ser perspicaz. O apóstolo Paulo sabia que o Diabo é um ser que possui perspicácia quando disse não ignorar os “ardis” e que ele se valia de métodos sofisticados para atingir as pessoas (2 Co 2:11; Ef 6:11). Assim, Satanás usou se seu conhecimento e perspicácia para atacar Jó.

Sendo assim, quais são as obras de Satanás? O que ele quer trazer e fazer aos Homens?

Dor e sofrimento. A introdução do livro de Jó apresenta Satanás com um ser capaz de agir contra o ser humano (Jó 1:12; 2:6). Através de suas ações é possível conhecer a natureza maligna de usas obras. É da natureza do diabo provocar dor e sofrimento aos seres humanos. No livro, Satanás impõe ao patriarca um sofrimento, até então, sem precedentes, pois ninguém sofreu como Jó no Antigo Testamento. Primeiramente, o Diabo atingiu as posses dele, o que fez o patriarca sofrer ao ver seu patrimônio destruído repentinamente. Da mesma forma, houve grande sofrimento em Jó quando ele viu a tragédia se abater sobre sua casa, pois sua família foi devastada. Entretanto, o sofrimento do homem de Uz não cessou com a perda da família. O Diabo o infligiu com uma doença que o fez padecer dor e isolar-se de todos.  

Acusar. O Diabo é capaz de infligir dor e sofrimento, mas não só isso. Ele também acusa. Faz parte de sua natureza acusar. Foi o que ele fez com Jó (Jó 1:10,11). O Diabo o acusou de praticar uma religiosidade baseada no interesse. Assim como fez, posteriormente, com o apóstolo Pedro, querendo cirandá-lo (Lc 22:31,32), o diabo quis fazer também com Jó. O livro do Apocalipse mostra a acusação como a missão do Diabo (Ap 12:10).

Tentar. Por outro lado, devemos destacar a atuação de Satanás na tentação para o mal. Também faz parte de sua natureza tentar pessoas. Pelo texto sagrado, podemos inferir que o Diabo impulsionou os sabeus e os caldeus, povos até então nômades, a dizimarem os bens de Jó (vv.12,14,17). É uma característica do Diabo incitar e tentar para o mal (1 Cr 21:1).

Mas vemos também que o livro de Jó retrata de forma nítida o ocaso final de Satanás. A vitória de Jó foi uma derrota para ele. Em quase todo o livro, Deus se mantém em silêncio e oculto, mesmo o leitor tendo consciência que Ele está lá e que o seu silêncio fala alto. Por outro lado, o Diabo não aparece mais a partir do capítulo três e não é mais mencionado no restante do livro. Não é, pois, propósito do livro pô-lo em evidência, nem tampouco superestimar o mal. O livro de Jó mostra que Satanás não teve êxito no seu intento, que era fazer com que Jó blasfemasse.

O livro tem um início dramático, mas um final apoteótico. Jó foi submetido a uma prova de fogo, e mesmo sendo chamuscado pelas chamas do sofrimento, saiu vivo e vitorioso. Deus nunca o abandonou. A graça estava oculta, assim como Ele disse ao apóstolo Paulo, “A minha graça é o que basta para você, porque o poder se aperfeiçoa na fraqueza” (2 Co 12:9). Trouxe Deus alívio, paz e livramento a Jó. Deus provou a Satanás que Jó era mesmo o homem que Ele disse que era: justo, reto e temente a Ele (Jó 42:7,8).

Em nenhum momento do livro de Jó Satanás é supervalorizado nem colocado em maior evidência que Deus. O brasileiro viu nascer no início dos anos oitenta o Neopentecostalismo, que é uma degeneração do Pentecostalismo Clássico, nascido em 1901. Essa nova doutrina coloca Satanás num patamar que ele nunca esteve nas Sagradas Escrituras. Tais igrejas falam muito mais do acusador e tentador do que mesmo do próprio Salvador. Nunca, mas nunca o Diabo teve esse poder que essas igrejas fazem parecer que ele tem. Aprendamos a fugir do mal e sejamos iguais a Jó, levando em conta o que Tiago nos disse em sua epístola, “Portanto, sujeitem-se a Deus, mas resistam ao diabo, e ele fugirá de vocês” (Tiago 4:7).

Soli Deo Gloria! Glória Somente a Deus!

VOCABULÁRIO:

-Ente: O que existe, o que é; ser, coisa, objeto. Ser humano; pessoa, indivíduo.

-Perspicaz: Que tem agudeza de espírito; sagaz, inteligente.

-Apoteótico: Que lembra apoteose; glorificante.

-NAA: Nova Almeida Atualizada.

BIBLIOGRAFIA:

ANDERSEN, Francis I. Jó: introdução e comentário. São Paulo: Vida Nova, 2008.

ANDRADE, Claudionor. Jó: o problema do sofrimento do justo e o seu propósito. Rio de Janeiro: CPAD, 2006.

KEENER, Craig S. A Hermenêutica do Espírito: lendo as Escrituras à luz do Pentecostes. São Paulo: Vida Nova, 2018.

WALTKE, Bruce K. Teologia do Antigo Testamento: uma abordagem exegética, canônica e temática. São Paulo: Vida Nova, 2015.

MACARTHUR, John. Comentário Bíblico: Jó. Rio de Janeiro: Thomas Nelson, 2019.

VANHOOZER, Kevin J. O Drama da Doutrina: uma abordagem canônico-linguística da teologia cristã. São Paulo: Vida Nova, 2016.

HARRIS, R. Laird; Archer Jr, Gleason L; Waltke, Bruce K. Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 1998.

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