Imagem retirada e adaptado do Logos Bible
Já percebeu, leitor, que o tempo torna doces lembranças dolorosas? Eventos marcados por dor e angústia, muitas vezes, ganham um ar de aventura, que gostamos de narrar em rodas de amigos, fazendo com que cicatrizes se tornem algo parecido com troféus. Basta alguém contar, por exemplo, que já quebrou o braço para aparecer outra pessoa declarando que praticamente é responsável pela maior parte do salário de um ortopedista.

Depois de mais de dois milênios, a dolorosa e humilhante morte de cruz do Nosso Senhor Jesus Cristo é tratada como meramente um doce símbolo. Isso faz com que passagens que mostram o quanto O Dono de Tudo humilhou-se deixando-se pendurar no madeiro percam muito de sua força argumentativa (“suportou a cruz, não fazendo caso da ignomínia” – Hb 12:2; “a si mesmo se humilhou,  tornando-se obediente  até à morte e morte de cruz” – Fl 2:8; “Certamente, a palavra da cruz é loucura para os que se perdem” – 1Co 1:18; “fazendo-se ele próprio maldição  em nosso lugar, porque está escrito: Maldito todo aquele que for pendurado em madeiro” – Gl 3:13).

Não pretendo, com esse texto, tirar a importância da cruz como símbolo. Ela foi muito relevante para a identidade cristã ao longo da história. Em primeiro lugar, só quero lembrar que aconteceu com essa representação o que acontece frequentemente com outros símbolos: nos agarramos ao representante e nos esquecemos do representado, ou seja, nos contentamos com a cruz e nos esquecemos de quem ela deve nos lembrar e do imensurável sacrifício que foi o Eterno nascer, viver e morrer, em morte de cruz, na história.

Outra questão importante é que não devemos no esquecer que nós, evangélicos, tendemos a nos lembrar mais da ressurreição do que da crucificação. Isso porque marcamos, no Brasil, nossa identidade em oposição ao catolicismo ibérico, marcadamente apegado à representação, de maneira mórbida inclusive, do Cristo morto, como em igrejas com Jesus (em tamanho “real” e com cabelos humanos) jazendo em uma urna ou em outras diversas representações iconográficas da crucificação.[1]

Uma exceção dentro do mundo evangélico a esse esquecimento do sofrimento do Nosso Senhor é o conjunto de cânticos, dentro dos hinários denominacionais mais antigos, das canções influenciadas pelo Pietismo que gostam de narrar o sofrimento na cruz (“Foi na cruz”, “Rude Cruz” etc.).[2] Nessas canções, os poetas querem gerar memória e empatia com Jesus, para que entendamos o quanto Ele nos amou e nos ama. Isso nos ajuda a entender o que significa carregar a nossa cruz diariamente (Lc 9:23).

Hoje é dia da Ressurreição. É dia de muita alegria para nós cristão. Como nos ensina o Apóstolo Paulo, “se Cristo não ressuscitou, é vã a nossa pregação, e vã, a vossa fé” (1Co 15:4). Mas não nos esqueçamos do sacrifício do Nosso Senhor, que deve gerar em nós gratidão, humildade e dependência. Lembremo-nos que, antes de ser Rei dos Reis e Senhor dos Senhores, usou uma coroa de espinhos, que serviu para machucar e humilhar Aquele que é, ao mesmo tempo, o Filho Amado de Deus e o Servo Sofredor de YHWH (Lc 2:22); antes de estar assentado no Trono como Leão de Judá, ele foi o Cordeiro de Deus que morreu em nosso lugar (Ap. 5).

Natal, 5 de abril do ano do Senhor de 2015



[1] Nem toda representação católica é ruim, não é essa a discussão. A questão é o excesso de apego à morte em detrimento da vida, talvez fruto de certa tristeza existencial ibérica. Diego Velasquez (Cristo Crucificado, 1632) é um bom exemplo da crucificação como excelente obra de arte.
[2] Sobre isso, ver O Celeste Porvir, de Antônio Gouvêa Mendonça.

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