“Dá ouvidos, ó pastor de Israel, tu que conduzes a José como um rebanho; tu que estás entronizado acima dos querubins, mostra o teu esplendor”. (Salmo 80.1).
O poema 23 do Saltério é conhecido como o “Salmo do Bom Pastor”. É um dos primeiros versículos decorados pelas crianças. Também é comum que adultos, quando surpreendidos com o pedido para que recitem e referenciem um versículo de cor, citem o primeiro verso da poesia supracitada, afinal, poucos lembram onde está “Jesus chorou” (depois de conferir, vi que está em Jo 11.35).
Apesar de ser lembrado pelo pastoreio do SENHOR em relação ao seu povo, o salmo em questão não é em sua totalidade baseado nessa figura; na verdade, apenas os quatro primeiros versículos se ligam à atividade pastoril. Os versos finais usam outra figura, a saber, a ideia de Deus como alguém que nos recebe em sua própria casa.
Pastor e anfitrião são figuras riquíssimas e mostram duas facetas do relacionamento de Deus conosco. Nesse primeiro texto, veremos a riqueza bíblica da primeira imagem poética. Não é minha intenção fazer uma exegese do poema em si; antes, pretendo indicar o pacote de sentidos que a ideia de Deus como nosso pastor extrai das Escrituras como um todo e, assim, mostrar a riqueza do Salmo 23.
A figura pastoril que inicia o salmo é cheia de significado e beleza. A sociedade de Israel era muito ligada à criação de gado ovino, tendo nas ovelhas fonte de comida (carne e leite) e de lã. Desse estilo de vida e economia são tirados exemplos de pastores que foram homens e mulheres piedosos, bons líderes e gente diligente. O piedoso Abel foi pastor, bem como Abraão e os outros patriarcas o foram. Não podemos esquecer de Jó, Rebeca e as filhas de Jetro. Moisés e o rei Davi (autor do salmo) são exemplos de grandes líderes israelitas que cuidaram de rebanhos ovinos. Até um proeminente profeta, Amós, foi chamado de entre ovelhas. No Novo Testamento, pastores foram as primeiras testemunhas do nascimento do Senhor Jesus.
A Bíblia como um todo afirma que o povo sem bons líderes para guiá-lo nos caminhos de Deus são como “ovelhas sem pastor” (Nm 27.17; 1Rs 22.17; 2Cr 18.16; Mt 9.35; e Mc 6.34). Também chama muitos líderes ou governantes de pastores ou descreve a liderança deles como pastoreio (“bom” quando cuidam de forma abnegada ou “ruim” se são egoístas), sendo alguns exemplos: 2Sm 5.2; 2Sm 7.7; 1Cr 11.2; Is 44.28; Jr 3.15; Ez 34; Ez 37.24; Jo 21.15-17; Ef 4.11; 1Pe 5.2.
Não apenas líderes humanos, mas o próprio SENHOR (YHWH) é descrito como quem “pastoreia” Jacó (Gn 48.15) e é chamado de “Pastor de Israel” (Gn 49.24). Nos dois últimos versos citados, o mui atencioso cuidado se deu em relação ao patriarca, sendo que o mesmo amor pastoral se mostra para com o povo de Deus como um todo (Jr 31.10). As Escrituras afirmam que o Deus transcendente, “que tem o trono entre os querubins” (Sl 80.1), também caminha juntinho de nós, pois Ele cuida dos seus (Sl 100.3) como um pastor faz com suas ovelhas (Sl 80.1).
O Pastor de Israel, quer seja o patriarca, quer seja o povo, também é o pastor cuidador pessoal do salmista (Davi). Evidentemente, Deus colocou esse salmo nas Escrituras para que você, leitor, possa, cheio de gratidão e esperança, declarar com emoção: “o SENHOR é o meu pastor”. Isso significa que YHWH, o senhor do universo, conhece você pelo nome, sabe suas dores, alegrias, enfermidades e desejos. Ele protege você, leitor, dos inimigos e proporciona descanso, alimento e água para sua vida (Sl 80.1).
Tem mais, leitor. “O SENHOR é o meu pastor”, por mais gloriosa que já fosse como uma convicção do cuidado próximo e pessoal de Deus na vida de um crente veterotestamentário, é uma verdade ainda mais gloriosa e intensa na sua vida hoje, minha irmã ou meu irmão. Explico.
No AT, só um rei de Israel ganhou o título de Pastor de Jacó/Israel: no caso, Davi (Sl 78.71-72). Uns cinco séculos depois (Ez 34.1-10), YHWH criticou a liderança de Israel, chamando-a de pastores que apascentam a eles mesmos, e prometeu: “Suscitarei para elas um só pastor, e ele as apascentará; o meu servo Davi é que as apascentará; ele lhes servirá de pastor. Eu, o Senhor, lhes serei por Deus, e o meu servo Davi será príncipe no meio delas; eu, o Senhor, o disse” (Ez 34.23-24).
Outro Davi, o Messias, o Filho de Davi, viria e seria o bom Pastor, conforme a profecia de Ezequiel. E, glória a Deus por isso, Ele já veio: é nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo. Ao contrário dos maus pastores, Ele, que é o bom pastor, deu a vida por nós (Jo 10.11, 15 e 17). Ainda conforme a profecia (Ez 34.11-31), Jesus reinará sobre nós para sempre e nos fará habitar eternamente na Terra Prometida, pois Deus fez conosco aliança de paz, aliança perpétua, a Nova Aliança no sangue de Cristo, o bom pastor que deu a própria vida pelas ovelhas, aliança que celebramos na Santa Ceia.
Tem mais. Uma das promessas da Nova Aliança em Ezequiel 34, e que Cristo já cumpriu como o Bom Pastor, é que, por meio da vinda do Espírito Santo, o SENHOR coloca para sempre o santuário, o lugar de sua habitação, pertinho da gente, dentro de nós como igreja (1Co 3.16-17) e como indivíduos (1Co 6.19). Embora isso já seja muitíssimo glorioso, mais glorioso será quando não existir nem mais santuário, pois o santuário na Nova Jerusalém “é o Senhor, o Deus Todo-Poderoso, e o Cordeiro [Pastor-Cordeiro]” (Ap 21.22).
Dá para falar mais da figura do pastor – eu nem falei das 100 ovelhas de Lucas 15, por exemplo. Mas de tudo que foi dito até aqui, dá para afirmar, leitor, que você nunca está sozinho, mesmo que passe por um “vale de trevas e morte”, mesmo que enfrente a própria morte, pois ela já foi vencida e ela não o tirará das mãos de seu Bom Pastor. Aqueles que são apascentados pelo Pastor-Cordeiro “jamais terão fome, nunca mais terão sede, não cairá sobre eles o sol, nem ardor algum, pois o Cordeiro que se encontra no meio do trono os apascentará e os guiará para as fontes da água da vida” (Ap 7.16-17).
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